Artigo de conclusão do curso "Livro para a infância" na Casa Tombada


Figura 1 - Capas e páginas internas do Almanaque “O Tico-Tico”, edições de 1944 e 1947. (Acervo da Biblioteca Infanto-Juvenil Monteiro Lobato) Fotografia da autora.
Figura 2 – Capas e páginas internas das edições de Jeca Tatuzinho de 1924 e 1973. (Acervo da Biblioteca Infanto-Juvenil Monteiro Lobato e reprodução do livro: Jeca Tatu e a propaganda brasileira. LR Editores. São Paulo). Fotografia da autora.


Uma leitura da infância no tempo dos almanaques:
“O Tico-Tico” e “Jeca Tatuzinho”
Stella Elia Martins Santiago[1]



Resumo: O artigo aborda os almanaques produzidos e publicados no Brasil no início do século XX, tendo em vista as relações que estabeleciam com a infância, dentro do contexto histórico, político, econômico e social do período. A pesquisa contempla as publicações “O Tico-Tico” e “Almanaque do Biotônico”, que ao lado do personagem “Jeca Tatuzinho” criado por Monteiro Lobato, foram responsáveis pela divulgação de projetos pedagógicos, marcados por valores morais, cívicos e sanitaristas. Ainda, analisa os recursos literários e visuais empregados nessas produções, que atraiam o público infantil e possibilitavam a prática de leitura para crianças e adultos em diferentes fases do letramento.
Agradecimentos: Antonio D’Angelo, Cristiane Rogério e Giuliano Tierno.
Palavras chave: almanaque, literatura infantil, O Tico-Tico, Jeca Tatuzinho, Biotônico Fontoura.

Title: A childhood reading in almanacs1 time: “O Tico-Tico” and “Jeca Tatuzinho”
Abstract: The article addresses the almanac written and published in Brazil, in the beginning of XX century, in view of the relationship established with childhood, in a historical, political, economic and social context of that age. The research looks on the editions “O Tico-Tico” and “Almanaque do Biontônico”, that whit the character of “Jeca Tatuzinho”, created by Monteiro Lobato, were responsible for the disclosure of educational projects, marked by moral, civic and sanitary values. Still analyzes the literary and visual resources employed in these productions, that attracted the childish target and made possible the reading practice for children and adults in different phases of their education.   
Thanks: Antonio D’Angelo, Cristiane Rogério e Giuliano Tierno.
Keywords: almanac, children´s literature, O Tico-Tico, Jeca Tatuzinho, Biotônico Fontoura. 

Introdução
A curiosidade pela temática dos almanaques surgiu do desejo de editar um almanaque a partir dos materiais produzidos em parceria com o ilustrador Weberson Santiago. Uma coletânea dos textos e ilustrações, criados de abril de 2015 a dezembro de 2017, para coluna “ArteMundo” do Suplemento Infanto-Juvenil dos jornais “Diário do Alto Tietê” e “Mogi News”, na cidade de Mogi das Cruzes.[2] No entanto, uma breve introdução ao tema revelou a multiplicidade de publicações do gênero e as diferentes áreas do conhecimento envolvidas na abordagem desses exemplares, em seus aspectos históricos, pedagógicos, literários, artísticos e da comunicação.
O primeiro almanaque indicado por uma professora da pós-graduação “Livro para a Infância”, que se encerra com este artigo, foi “O Tico-Tico”, que me encantou já nas primeiras informações e imagens descobertas no livro do pesquisador Waldomiro Vergueiro. As propostas divertidas e diversificadas, a possibilidade de um livro que poderia se transformar em brinquedo, foram ao encontro ao trabalho desenvolvido pelo coletivo Casa BabaYaga[3], do qual faço parte. Uma parceria entre ilustradores, escritores, designers e editores, para criação e publicação de trabalhos independentes voltados ao público infantil.
Posteriormente, entrar em contato com o “Almanaque do Biotônico” e o personagem “Jeca-Tatuzinho” criado por Monteiro, despertou meu interesse por essas publicações que representavam uma leitura de caráter popular. O material impressionou por conta da tiragem e da distribuição de exemplares, pois trazia a possibilidade de acesso à informação gratuita em diferentes classes e regiões do país. Tendo em vista que, até os dias de hoje, o Brasil apresenta enorme desigualdade na distribuição de recursos pedagógicos para educação básica e pública.
No início, as questões que conduziram a pesquisa sobre o tema foram: os almanaques eram mais populares e acessíveis às crianças do que os livros? Eles eram adequados aos interesses e curiosidades do público infantil? Como eram compostos em relação aos gêneros textuais, conteúdos, ilustrações e design gráfico? O material possuía qualidade artística e literária? No entanto, essas perguntas se mostraram parte de uma questão maior: à qual infância estas produções eram destinadas? Para isso, foi preciso um breve reconhecimento do contexto histórico, político, econômico e social, e consequentemente, do projeto pedagógico do período. 

No tempo dos almanaques
Segundo Park (1999), os almanaques eram populares na Europa como um gênero de grande circulação. O primeiro almanaque foi publicado no ano de 1455, após a invenção da imprensa, no entanto, o gênero foi popularizado nos séculos XVI e XVII. Para autora, não é possível determinar uma origem única e exata para esta palavra que nomeia tal livro, ela pode remeter a diferentes idiomas e significados, entre eles: contar, computar, meses, estreias, boas novas, todas as luas. Na sua forma mais simples e popular, era uma pequena publicação impressa e ilustrada, estruturada a partir do calendário que oferecia saberes astronômicos, religiosos, sociais, científicos, técnicos, astrológicos, medicinais, agrícolas, históricos, celebrações, entre muitos outros.
Assim, os almanaques fazem parte da história do livro como um suporte para registro do tempo e também um passatempo. Sua grande difusão atendia as camadas mais populares, seja nos meios de produção e circulação, como na prática de leitura. Ao lado da Bíblia Sagrada, representava um dos poucos materiais impressos presentes nos ambientes domésticos e eram reconhecidos como uma referência familiar, pois continham todo tipo de conteúdo. O material era destinado a pessoas letradas e analfabetas, composto por textos e conhecimentos de diferentes naturezas, com caráter útil e prazeroso, didático e devocional, artístico e informativo, promovia conhecimentos tradicionais e modernos. Proporcionavam instrução, os saberes e observação do mundo, e ainda, denotavam reflexões sobre as relações sociais com caráter moral e político.
Com distribuição anual, os almanaques faziam parte da infância, adolescência, vida adulta e velhice, numa leitura cotidiana e cíclica, como sua periodicidade. Seus textos eram lidos, recitados, repetidos e memorizados, num ritual diário de leitura. A composição gráfica ajudava a orientar os leitores menos fluentes, através da relação entre texto e imagem que auxiliava na decodificação das palavras. De modo que a prática de leitura oral e visual ampliava a capacidade de interpretação e o intercâmbio entre a cultura escrita e popular, entre adultos e crianças, entre leitores mais experientes, iniciantes e mesmo analfabetos. O retorno da publicação a cada final de ano demarcava a temporalidade da vida, o desejo do homem de organização do tempo e de compreensão do mundo natural e sobrenatural.            
Os almanaques permitiram o acesso à informação, assim como, recuperavam e reproduziam por escrito, os elementos da tradição oral. Dessa forma, aproximavam a cultura erudita da popular, com uma concepção de manual, tinham o objetivo de ensinar e divertir, utilizando diferentes conteúdos e gêneros textuais, como previsões, anedotas, notícias, fábulas, contos, conselhos, etc... Os temas e a estrutura destes livros não apresentaram grandes modificações ao longo da história, apenas o aspecto visual e alguns preceitos de acordo com o ideário de cada período. Com isso, o material determinou uma familiaridade para leitura, que marcou com afeto a memória de seus leitores. O livro de contagem do tempo se transformou num suporte da representação do mundo de seu tempo e ficou guardado no imaginário da lembrança de muitos leitores.

Assim como os calendários, trazem principalmente a marca dos tempos, numa repetição que nunca é a mesma pois o tempo da leitura tudo modifica. Até o leitor... (Park, 1999:16)
      
Os almanaques chegaram ao Brasil no final do século XIX, como publicações religiosas, literárias e informativas, vinculados às cidades, livrarias, tipografias, empresas farmacêuticas e grupos da imprensa.  Para Meyer (2001), eles chegavam a lugares em que os livros não chegavam, suprindo a carência da população por leitura e literatura. Com isso, ganhou um importante papel político e pedagógico, difundindo valores e normas de vida familiar, social, profissional e saúde. Era guia e conselheiro, para diferentes classes sociais de locais remotos, rurais e urbanas, oferecendo repertório e previsões, informações úteis e práticas, lazer e distração. Eram publicações, por vezes, ofertadas como brindes de Natal, que acenavam a passagem do tempo e representavam a esperança do novo ano, ainda, renovavam o gosto e o material para leitura familiar.         
Em 1890, o escritor Machado de Assis escreveu “Como se inventaram os almanaques” publicado no “Almanaques Fluminenses”, que contava uma história sobre a origem e função do almanaque. Na narrativa, o velho Tempo se apaixonara pela jovem Esperança, por isso criou os almanaques que registravam dias, meses e anos, para que ninguém mais se enganasse com o tempo. Os folhetos que caiam dos céus faziam com que todos compreendessem a língua do campo e das cidades. As palavras organizadas e convertidas em folhas de papel se modificavam a cada ano e assim, contaram a passagem do tempo. Dessa forma, almanaques contavam a idade da Esperança, que quando deixou para trás a juventude tornou possível o amor do velho Tempo. E, a partir de então, o passar do tempo enchia de esperança a vida das pessoas.

O tempo os imprimi, a esperança os brota; é toda uma oficina da vida.
(Assis in Meyer, 2001:28)

A leitura da infância
No Brasil, os almanaques atuaram como veículos de cultura, arte, literatura e educação para infância no início do século XX. Compostos por pequenos textos, piadas, charadas, cartas, jogos, provérbios, que por vezes eram escritos e ilustrados por autores consagrados. Além dos divertimentos, continham informações pragmáticas sobre temas históricos, literários, artísticos, religião, saúde, costumes e acontecimentos, que eram compartilhadas entre família e na escola. Um material acessível às crianças de diferentes classes e lugares, seja pela larga distribuição em todas as regiões do país, seja pelo tipo de leitura que propunha uma variedade de gêneros textuais e a relação entre palavra e imagem. 
Segundo Meyer (2001), as ilustrações e a tipografia transformavam textos em desenhos e auxiliavam na leitura através da compreensão do conjunto, os fragmentos de palavras, imagens e ideias compunham uma unidade. Os almanaques apresentavam diferentes formatos e acabamentos, desde edições requintadas às mais populares. Inclusive alguns almanaques de farmácia, editados por laboratórios e distribuídos gratuitamente, eram impressos nas gráficas dos rótulos de medicamentos. Os custos de produção poderiam ser financiados por anúncios publicitários, pela venda direta e assinaturas, ou ainda, através da publicidade dos produtos dos próprios editores, muitas vezes destinados à infância.  
Para Zilberman (2005), a integração entre a linguagem verbal e visual é parte constitutiva de publicações destinadas às crianças, sejam elas leitores alfabetizados ou não. No Brasil, a literatura infantil começou a ser produzida no final do século XIX, principalmente, no período posterior a Proclamação da República, atendendo a uma demanda da educação e de um grupo social emergente, a classe média urbana. Para atender este novo mercado, os escritores recorreram a traduções de obras estrangeiras, adaptações da literatura adulta, contos recolhidos da tradição popular europeia, aproveitando também o material didático e o livro escolar. A revista “O Tico-Tico”, posteriormente transformada em almanaque, foi concebida neste contexto e era destinado exclusivamente ao público infantil.
O período, denominado na história do Brasil como “Primeira República” (1889-1930), ficou caracterizado pela aproximação e relação entre literatura e imprensa. Mais especificamente, Menna (2012) considera que a publicação de periódicos destinados ao público infantil contribuiu para formação de leitores e na construção e divulgação da literatura infantil no Brasil. Escritores, como Olavo Bilac e Monteiro Lobato, chegaram a declarar que o jornalismo era o único meio de se fazer ler, em um país que não considerava o livro uma necessidade, ou ainda, que a publicação em revistas e jornais tornava a obra literária mais conhecida, além de avaliar o gosto do leitor. Portanto, a atividade representava uma fonte de renda para escritores e ilustradores, além de um espaço para a publicação de suas criações e contato com o público.   
Assim, enquanto o livro era o suporte ideal utilizado na educação escolar, a imprensa assumiu um papel complementar na literatura infantil e na prática de leitura entre as crianças. Através de uma abordagem mais informal e lúdica, jornais, revistas, almanaques e folhetos, criaram um mercado consumidor e uma comunidade leitora, num país de escolarização precária. Mas, não deixavam de atender também a proposta de educar e formar os pequenos leitores de acordo com as concepções e tendências pedagógicas vigentes. De modo que, estas publicações ficaram marcadas por ideologias políticas, pedagógicas e por interesses comerciais de seu tempo, definidos a partir das escolhas que orientavam a seleção dos conteúdos, formatos e materiais.
Segundo Menna (2012), o Brasil passava por transformações econômicas e sociais que acarretaram uma nova concepção da infância. Uma república recém-constituída, o país buscava a construção de uma nação baseada na luta contra a degeneração de jovens e crianças, pois cuidar das novas gerações era requisito básico para o modelo de modernização e civilização almejado. Além de uma aposta para o futuro, com a ascensão da classe burguesa, a criança se tornava o núcleo da família e da sociedade. Então, a infância passou a ser encarada como a fase da vida de formação do caráter e propensa ao aprendizado, cercada de cuidados com a saúde física e mental, com a educação moral e cívica.
Neste momento, houve uma ascensão do papel da escola na sociedade, através das propostas de coletivização dos processos de aprendizagem dos conteúdos burgueses para todas as classes sociais. Seja por questões políticas, seja pelo acesso aos conhecimentos desenvolvidos na área da psicologia da educação, o tempo da infância tornou-se cada vez mais atrelado ao ciclo escolar. Porém, a expansão da rede de ensino, que teve seu apogeu na década de 1920, refletia as diferenças e o desprezo pela educação popular. Com uma tendência nacionalista e baseada na eugenia, a proposta pedagógica era fundamentada no respeito às tradições e hierarquias, que consolidava a segregação e a aceitação da estrutura social estabelecida. Neste contexto, “Jeca Tatuzinho” foi criado por Monteiro Lobato, representando algumas dessas ideias.     
Dessa forma, os almanaques pesquisados neste artigo demonstravam e reforçavam as diferentes infâncias que coexistiam no Brasil. Enquanto “O Tico-Tico”, lançado em 1907, era destinado a um público de classe média e alta, visando à formação de uma criança capaz de manter seus privilégios e conduzir o desenvolvimento e progresso do país. De outro lado, em 1924 “Jeca Tatuzinho” se tornava o garoto propaganda do “Biotônico Fontoura” e material de divulgação do laboratório farmacêutico. A publicação foi amplamente distribuída pelo território nacional, suprindo a carência de informação e materiais de leitura para adultos e crianças, mas também, difundindo um projeto de reforma e civilização da nação, baseado no aperfeiçoamento da população através da saúde e educação. Como veremos a seguir.  

O Tico-Tico
Segundo Azevedo (2005), o primeiro número da revista semanal foi publicado em 11 de outubro de 1905, no Rio de Janeiro, com a tiragem de 10.000 exemplares esgotada. Fundada por Luiz Bartolomeu Souza e Silva, responsável pelo grupo “O Malho” e utilizando sua estrutura de distribuição, impressão e equipe profissional, o periódico foi o pioneiro no Brasil destinado às crianças. O nome, simples e despretensioso, representava o intuito de oferecer uma alegria singela e sadia aos pequenos leitores, podendo ser uma homenagem ao próprio passarinho, de acordo com Luiz Bartolomeu, ou mesmo às escolas de gente miúda, também conhecida como escolas para tico-tico, escolhido por Manoel Bomfim e Renato de Castro, colaboradores na concepção da publicação.
O primeiro almanaque “O Tico-Tico” foi publicado em 1907 e, assim como a revista, cativou o público infantil, pais e educadores. Os exemplares eram impressos a cores e inicialmente, era comum a reprodução e decalque de materiais estrangeiros.  No entanto, a publicação contava com uma equipe de ilustradores e escritores proeminentes do período, entre eles: Ângelo Agostini, Vasco Lima, Lobão, Cícero Valadares, J.Carlos, A.Rocha, Luis Loureiro, Leonidas, Paulo Affonso, Alfredo Storni, Oswaldo Storni, Miguel Hochmann, Max Yantok e Luiz Sá, nos desenhos. No texto: Eustórgio Wanderley, Manoel Bomfim, Renato de Castro, Euricles de Mattos, Oswaldo de Souza e Silva, Carlos Manhães, entre muitos outros colaboradores, tendo em vista a longa duração do periódico, até o ano de 1958.
Segundo Vergueiro (2006), no capítulo escrito com Franco de Rosa, específico sobre os almanaques, após um ano da publicação da revista, foi lançado o primeiro anuário, condensando a produção mais representativa oferecida semanalmente. Todas as edições foram impressas em quadricromia, com cadernos em preto e branco, utilizando papel acetinado e capa dura cartonada. Em geral, eram compostos por Histórias em Quadrinhos, contos e artigos ilustrados, poesias, correspondências com o leitor, anúncios publicitários, passatempos, brinquedos de armar e calendário, através dos quais seria possível reconhecer os diferentes períodos da revista, a variedade de assuntos e a qualidade das produções.
As edições consultadas na Biblioteca Infanto-juvenil Monteiro Lobato, da cidade de São Paulo, correspondem aos anos de 1944 e 1947. O formato (30,5x 23,5) remete a um livro de tamanho médio, exibindo uma capa ilustrada com desenho tipo cartum e motivos natalinos. No interior, apresentava uma grande variedade de assuntos e gêneros textuais, ao longo das 146 e 124 páginas, respectivamente. Ofereciam também: monólogos para teatro, modelos para desenho, enigmas matemáticos, tirinhas, partituras musicais, mandamentos cívicos, recados religiosos, obras de arte de artistas acadêmicos, cenas da história, a letra do Hino Nacional, e ainda, o texto “As Cruzadas” de Monteiro Lobato, um condensado do livro “História do Mundo para Crianças”.
Estes almanaques representam uma fonte de pesquisa para a compreensão da vida e sociedade no período[4], e ainda, denotam os anseios de uma classe intelectual por educação, cultura e saúde. De modo que, através da escolha e produção atribuída a escritores, ilustradores e editores, a publicação acompanhava as tendências pedagógicas vigentes, com acentuado tom moral e cívico. O material explorava o caráter lúdico, a ilustração, a diversidade de gêneros textuais, o projeto gráfico, tipografia como recursos da literatura infantil que ampliavam as possibilidades de leituras e leitores. No entanto, a temática era baseada na transmissão de valores e conhecimentos, que estavam de acordo com a formação que se pretendia dar as crianças.    
Segundo Hansen (2007), a Primeira República correspondeu à fase de reformulação do país e de um novo ideal de infância, frente às mudanças políticas, econômicas e sociais. Neste período predominou uma literatura infantil cívico-pedagógica, que apresentava os padrões de comportamento adequados aos futuros cidadãos. De modo que a infância representava o potencial para a formação do homem moderno e para constituição de uma nação civilizada. Neste contexto, “O Tico-Tico” já revelava suas pretensões em seu editorial de lançamento, um empreendimento comercial com função pedagógica e destinado exclusivamente às crianças, com a proposta de divertir, ensinar, encantar e distrair através da prática da leitura.    
No entanto, para autora, mais do que representar a criança desse tempo, as publicações refletiam o desejo de direcionar o olhar do leitor diante do mundo, buscando sua adesão afetiva e intelectual para o projeto almejado.  Os interesses morais e cívicos deixaram marcas na produção literária, pois determinavam a atuação de autores dispostos em assumir este papel pedagógico. Os almanaques e revistas assumiram um compromisso patriótico com a formação da infância, defendendo novos hábitos, virtudes e valores para superação do atraso nacional. Com isso, correspondiam a verdadeiros manuais de atitudes e qualidades, como: honestidade, generosidade, prudência, asseio, obediência, respeito, justiça, coragem, honra e fé. 
Apesar da carga moral e cívica, Menna (2012) considera que os almanaques de fato divertiam o público infantil, com suas páginas ilustradas, histórias, textos informativos e calendários. Estas publicações apresentavam uma proposta de diálogo com leitores e uma relação com a criança, na qual se comparava aos brinquedos. Suas edições ofereciam atividades lúdicas e de criação, como desenhos para pintar, cartas, concursos, poemas para declamar, textos para encenar, moldes de costura e bordado, decalques, passatempos e encartes para recorte e montagem de fantasias, brinquedos e jogos. De modo que cada exemplar poderia ser consumido, manipulado, recortado, conter anotações, propiciando uma nova experiência entre infância e literatura.
O periódico apresentava novos materiais e modelos de leitura, que ultrapassaram o livro como único suporte de literatura infantil. E, ao mesmo tempo em que promovia diferentes gêneros literários, muitos autores afirmam que “O Tico-Tico” foi responsável pela divulgação das primeiras Histórias em Quadrinhos no Brasil. Isso porque, desde as primeiras edições, muitas páginas eram dedicadas às histórias quadrinizadas, nas quais ilustrações legendadas apresentavam uma narrativa através de recursos verbais e visuais. Desse modo, a publicação introduziu uma linguagem ainda em transformação, sem os balões e discursos diretos, que se consolidou posteriormente, na década de 1940. 
As publicações apresentavam recursos verbais e visuais bastante atraentes para crianças com diferentes faixas etárias e níveis de alfabetização. No entanto, para Hansen (2007), era um produto direcionado principalmente ao público do sexo masculino, alfabetizado e com acesso a escola.  As suas páginas marcavam a distinção de gêneros em seus papéis sociais: aos meninos foi atribuída à responsabilidade de condução do progresso da nação e às meninas, a função de condutoras do lar e da família. No conjunto, valorizavam a infância de um segmento reduzido da sociedade brasileira, contribuindo para configuração de um estereótipo do menino virtuoso e da menina recatada, como modelo de comportamento aos demais pequenos brasileiros.
As crianças em idade escolar, principalmente os meninos, representavam os investimentos e esperanças da família, pois o estudo, trabalho, inteligência, esforço e prestigio eram o principal instrumento para ascensão social num sistema democrático baseado na meritocracia. Mas, o público de “O Tico-Tico” estava longe de representar a realidade da maioria da população infantil brasileira, que apresentava altos índices de analfabetismo e pouco acesso à escolarização. Em 1905, o periódico convocou seus leitores a escreverem sobre o que desejavam para o ano seguinte, as cartas indicavam a consciência das diferenças e sinalizava o surgimento de uma movimentação por uma educação popular, como observamos no trecho a seguir:

Desejaria que em nosso país fossem neste ano semeadas muitas escolas primárias para que se acabasse a gente que não sabe ler, e que, por isso não goza nem a ventura de ler “O Tico-Tico”. (Hansen, 2007: 223)

Jeca Tatuzinho
Jeca Tatuzinho foi criado por Monteiro Lobato e publicado em livro ilustrado por K. Wiese em 1924. No mesmo ano, passou a ser utilizado na divulgação do “Almanaque Biotônico Fontoura” e distribuído gratuitamente por todo território nacional. Segundo Park (1999), Candido Fontoura e Monteiro Lobato se conheceram na redação do jornal “O Estado de São Paulo” e Lobato não cobrou pela criação do folheto que fazia propaganda do composto criado por Fontoura . O xarope, que promovia o raciocínio e a disposição para aprender, era recomendado para crianças em idade escolar. O personagem, que também estampava as páginas do almanaque, caiu no gosto popular e virou o garoto propaganda de maior sucesso do Brasil.
Inicialmente, Jeca Tatu foi apresentado no artigo “Velha Praga”, um dos 14 contos que compõem a obra “Urupês”, publicada em 1918. No período, o escritor havia herdado a fazenda de seu avô, o Visconde de Tremembé, e descreveu suas percepções acerca do caboclo: um parasita, ignorante, preguiçoso, supersticioso, a verdadeira praga da terra, responsável pelo fracasso de sua atividade agrícola. Se por um lado, ele desqualificava o caboclo como o representante da miséria humana, por outro colocou em evidência os problemas da população do campo. Neste sentido, com a criação de Jeca Tatuzinho, Lobato denunciava a doença comum do homem da roça, o amarelão ou ancilostomose, e defendia a ideia de cura, através dos cuidados com a saúde e educação.  
Na edição de 1924 publicada pela Companhia Editora Monteiro Lobato e consultada na Biblioteca Infanto-juvenil Monteiro Lobato, o escritor conta a história de um caipira que vivia na pobreza, com a mulher e filhos, e trabalhava apenas o necessário para viver. Depois de ser examinado pelo médico, foi diagnosticado com amarelão, que receitou caldo de porção de erva de Santa Maria, óleo de rícino, biotônico e botas número 45. O cuidado com a saúde devolveu o ânimo para o trabalho e gerou riquezas, que o Jeca não guardou para si, empregou sua fortuna em longas viagens dedicadas a curar a gente pobre de todo país. “O meu patriotismo é esse!” afirmava Jeca Tatu, que morreu velho e com a consciência tranquila do dever cumprido.
A 35° edição de Jeca Tatuzinho, de 1973, apresenta diferenças no texto e na imagem, em relação à peça original. Além de incorporar na narrativa a propaganda de outros produtos como: detefon, gripagil e fontol, as ilustrações elaboradas por J.U.Campos, utilizam um traço próximo ao cartum, com contornos pretos reforçados e cores vivas, que estavam de acordo com as possibilidades técnicas de impressão para um material de baixo custo. As ilustrações de K.Wiese possuem tons mais suaves e traçado delicado, no entanto, as composições das cenas criadas pelo artista foram reproduzidas nas versões seguintes, que apenas conferiram novos estilos ao desenho.    
O personagem criado por Lobato conquistou o publico infantil através dos almanaques, que chegaram a uma tiragem de 100.000.000 de exemplares e circularam até a década de 1980. Estas edições eram esperadas no mês de dezembro por quem não tinha dinheiro para comprar outras publicações, representavam um meio de acesso à literatura para pessoas mais simples do interior. Segundo Park (1999), os textos curtos, as imagens e a leitura compartilhada, tornavam possível o entendimento da escrita aos analfabetos ou semialfabetizados.  Quem sabia ler um pouco, lia para os demais, e ainda, os desenhos, letras, palavras e paginação também auxiliavam na compreensão, funcionando como elementos norteadores da leitura.
O “Almanaque do Biotônico” era conhecido como livro dos iletrados, devido a essa prática de leitura por vezes precária, que unia os conhecimentos enciclopédicos ao modo de vida popular. O material de pequeno formato (18,3x13,4 cm) apresentava em média 32 páginas, em que o miolo era impresso nas cores preto e vermelho e a capa e quarta capa coloridas. As edições eram organizadas a partir dos meses do ano, com informações sobre horóscopo, numerologia, santos católicos, fases da lua, agricultura, ciência, história, curiosidades e celebridades. O personagem Jeca Tatu visitava suas páginas, fazendo propaganda dos produtos, dando conselhos ao lado do próprio Monteiro Lobato e posteriormente nas Histórias em Quadrinhos.
Um livro frágil, de encadernação simples e papel barato, era distribuído nas farmácias, escolas, armazéns e por ambulantes, que ajudou na alfabetização das muitas crianças.  Mas, não se restringia a um publico específico, entre seus leitores estavam: homens e mulheres, patrões e empregados, jovens e velhos. Uma produção acessível, que estimulava a prática da leitura diária, inclusive alguns exemplares continham um cordãozinho para que pendurados na parede ficassem sempre à vista e ao alcance da mão. Para Park (1999), a publicação representou a passagem do mundo oral para o escrito, proporcionando a uma parcela da população a aproximação e identificação com o universo letrado.
Portanto, era uma leitura popular que se alimentava da cultura erudita, que promovia a distração e aprendizado, gravados principalmente nas lembranças da infância de seus leitores. Mas, além de participarem da vida cotidiana, os almanaques moldaram o comportamento de gerações de brasileiros.  A edição destes livros, pela indústria farmacêutica, agregava os ideais de eugenia, de curar e aperfeiçoar a população, fundamentada na saúde e na educação. Dessa forma, difundiam normas de condutas individuais e sociais, informações sobre alimentação, higiene, saúde, orientações morais e cívicas, em beneficio do progresso e modernização do país.  Uma verdadeira euforia nacionalista apoiada pela imprensa e defendida também por Lobato.
No entanto, vale ressaltar que este nacionalismo ganhou novos contornos na obra de Monteiro Lobato, afinados às propostas modernistas de ruptura com a tradição europeia. Segundo Peixoto (2003), Lobato alterou o paradigma da literatura infantil em seu tempo, incorporando o folclore e a tradição oral brasileira na construção de uma identidade nacional. Além de promover uma renovação da linguagem e da temática, introduzindo uma narrativa coloquial, a preocupação com problemas sociais, as teorias evolucionistas, ideias liberais e os questionamentos de valores e da religião. Esta fusão entre a fantasia e pedagogia resultou num fenômeno de venda, que solidificou o interesse e a produção destinada às crianças na cultura brasileira.
Lobato defendia a superação do atraso nacional a partir da disseminação da informação e da ciência. Era preciso descortinar a realidade brasileira e esclarecer o povo de seus males, assim como fez com Jeca Tatu. De fato, a história contada e recontada, apresentava um personagem que ganhou o reconhecimento popular e sinalizava a possibilidade de mudança. O escritor criou um anti-herói, uma caricatura pejorativa do caipira, a quem, posteriormente, atribuiu à função de ensinar as noções de higiene e a importância da educação, frente às condições precárias de vida da população do campo. Mesmo assim, o criador não conseguiu recuperar sua criatura, que ficou marcada no imaginário popular, perpetuando a marginalidade do caboclo.   

Considerações finais
A minha impressão sobre almanaques, desde os mais recentes ou lembranças do tempo de minha infância, eram livros educativos e de curiosidades caracterizados pelo excesso de informações, fragmentos, colagens de imagens e textos. Mas, ao fazer as primeiras leituras sobre o tema, essa concepção se expandiu. De fato, o objetivo é educar e entreter, mas mais do que uma produção de baixo custo e popular, contavam sobre o mundo e a passagem do tempo e inseriam a prática da leitura na vida cotidiana, entre outros aspectos que aguçaram o meu interesse.
As publicações analisadas neste artigo estavam de acordo com o desejo nacional de modernização, progresso e civilização, no entanto, eram destinadas às diferentes infâncias que coexistiam no país. Enquanto “O Tico-Tico” era um periódico direcionado ao público infantil, pertencente às famílias de classe média, para quem a infância estava diretamente relacionada ao ciclo escolar. O “Almanaque Biotônico Fontoura” ao lado de “Jeca Tatuzinho” não restringia a faixa etária, tendo em vista que nas camadas populares, a infância e os estudos logo eram interrompidos pela labuta.
Dessa forma, seja para atrair os olhares do púbico infantil ou para possibilitar uma prática de leitura de pessoas com pouco contato com a linguagem escrita, os almanaques exploravam as estruturas, projetos gráficos, os gêneros textuais, a relação entre palavra e imagem, como recursos para o entendimento dos conteúdos. Segundo Garralón (2015), a organização das informações, de maneira prática e acessível, podem ajudar na compreensão, reflexão e transformação da leitura em conhecimento, num processo de aprendizagem interdisciplinar, livre e espontâneo, guiado pela curiosidade.  
Neste caso, os almanaques incorporavam esta leitura que não dependia tanto do nível linguístico, mas do interesse e conhecimentos prévios. Para autora, “informar” é tornar um conteúdo compreensível e atraente para um público não familiarizado com o tema, ou ainda, em diferentes estágios da competência leitora. Para isso, a importância dos recursos narrativos, tipografia, ilustrações e fotografias, como elementos de um projeto gráfico facilitador, que através de uma hierarquia de informações, ensina o leitor a ver, observar, classificar, deduzir e assim, construir o seu saber.
Os almanaques cumpriam a função de divulgadores de informação e instrução, convidando seus leitores a ver o mundo através dos livros. Com isso, é importante reconhecer e avaliar suas intencionalidades, quais ideologias e valores defendiam e o público que pretendiam atender. As respostas a essas questões demonstram as desigualdades sociais do período: de um lado, uma infância que deveria se conscientizar de sua situação para não atrasar o desenvolvimento do país, de outro, crianças cercadas de privilégios, visando à manutenção de sua classe no poder.


Referências bibliográficas
AZEVEDO, Ezequiel. O Tico-Tico. Cem anos de revista. São Paulo. Via Lettera. 2005
COELHO, Nelly N. Literatura Infantil: teoria, análise, didática. 1 edição. São Paulo: Moderna, 2000
GARRALÓN, Ana. Ler e saber. Os livros informativos para crianças. São Paulo. Pulo do Gato. 2015
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[1] Mestre em História e Fundamentos da Arquitetura (FAU- USP), especialista em História da Arte (FAAP-SP) e professora de Arte da rede pública do Estado de São Paulo desde 2004.
[2] O suplemento participa do programa Dat - “Formando o cidadão do futuro”, coordenado por Suéller Costa, que promove ações pedagógicas e distribui as edições do jornal diariamente em escolas das cidades de Arujá, Biritiba Mirim e Poá.
[3] Formado em julho de 2016, fazem parte do grupo: Alessandra Corá, Carolina Moreyra, Debora Barbieri, Marcia Misawa e Stella Elia, e ainda, os parceiros: Peter O’Sagae, Suryara Bernardi, Vanessa Prezoto e Weberson Santiago. www.casababayaga.com.br
[4] Algumas edições estão disponíveis para consulta na Hemeroteca Digital Brasileira da Biblioteca Nacional.  http://bndigital.bn.br/acervo-digital/almanaque-tico-tico/059730


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